sábado, 15 de janeiro de 2011


Tudo isso me perturbava porque eu pensara até então que, de certa forma, toda minha evolução conduzira lentamente a uma espécie de não-precisar-de-ninguém. Até então aceitara todas as ausências e dizia muitas vezes para os outros que me sentia um pouco como um álbum de retratos. Carregava centenas de fotografias amarelecidas em páginas que folheava detidamente durante a insônia e dentro dos ônibus olhando pelas janelas e nos elevadores de edifícios altos e em todos os lugares onde, de repente, ficava sozinha comigo mesma. Virava as páginas lentamente, há muito tempo antes, e não me surpreendia nem me atemorizava pensar que muito tempo depois estaria da mesma forma de mãos dadas com um outro eu amortecido — da mesma forma — revendo antigas fotografias.

Mas eu não podia, ou podia mas não devia, ou podia mas não queria, ou não sabia mais como se parava ou voltava atrás, eu tinha que continuar. Mas não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar,tem coisa mais autodestrutiva do que insistir sem fé nenhuma?

Essa aceitação ingênua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, e não derrubar. De quem não sabe que esse prolongado construir implica erros – e saber viver implica em não ver esses erros, em suavizá-los e distorcê-los ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja ameaçado.

E recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa só existência. É por isso que me esquivo e deslizo por entre as chamas do pequeno fogo, porque elas queimam – e queimar também destrói.

Frágil – você tem tanta vontade de chorar, tanta vontade de ir embora. Para que o protejam, para que sintam falta. Tanta vontade de viajar para bem longe, romper todos os laços, sem deixar endereço. Um dia poderá mandar um cartão-postal de algum lugar improvável. Bali, Madagascar, Sumatra. E Escreverá: penso em você. Deve ser bonito, mesmo melancólico, alguém que se foi pensar em você num lugar improvável como esse. Você se comove com o que não acontece, você sente frio e medo. Parada atrás da vidraça, olhando a chuva que, aos poucos começa a passar.

Mas, enfim… eu desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, e você, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em tudo outra vez.


Caio Fernando Abreu


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